"A América é um sonho que acabou em pesadelo"
Neste livro a presença e as palavras de Walt Whitman acompanham as três situações que narra. Porque o trouxe para estas histórias?
Ele está para este livro um pouco como a banda sonora de Philip Glass n'As Horas, ou seja, é uma forma de ligação entre as histórias. Mas é também um complemento e um contraponto entre elas. Eu escrevi três histórias sobre uma América sombria e difícil. E o grande poema de Whitman, Folhas de Erva, nasceu numa altura em que a América parecia a caminho de se transformar a nação mais generosa, abundante e democrática alguma vez vista. E eu estava, no presente, a escrever sobre um sonho que acabou mal. E uso-o como a voz do sonho quando ainda o era. Uma voz de esperança... Porque acredito que, enquanto houver uma pessoa viva, as coisas podem sempre melhorar.
Há bombistas-suicidas que, numa das histórias, citam Whitman como ponte para um mundo melhor...
Esperam ir para um mundo melhor. E sinceramente creio que os terroristas devem sentir o mesmo. Duvido que muito poucos terroristas, que eventualmente tenham sobrevivido a este tipo de atentados, cheguem à noite a casa e pensem "mais um dia de maldade para o mundo..." Não creio que o George W. Bush pense também assim... As pessoas fazem o que pensam que é certo, mesmo que isso seja terrível e destrutivo.
Vê o seu livro como uma reflexão sobre os pesadelos da América do presente, apesar de conter uma história no passado e uma no futuro?
Seria difícil olhar para a América de hoje e dizer "que bem que isto está a correr!" Não está. Como escritor posso escrever apenas sobre o que vejo. E não me vejo a escrever sobre a América do sonho feito realidade, mas a do sonho que se fez pesadelo.
No prólogo fala sobre a necessidade de se ser preciso quando se escreve sobre o passado. Usa a ficção como um olhar pessoal sobre o real?
Penso dessa forma, sim. Há opções que escolho como romancista, outras que tomo porque fazem parte da minha natureza. Acho a realidade difícil, mas interminavelmente interessante.
Experimenta também a ficção científica na terceira história. Como se preparou para esse tipo de registo menos familiar em si?
Foi a parte mais difícil de escrever, e curiosamente as pessoas perguntam-se se me diverti, porque parece-lhes ter sido a mais fácil... A boa ficção científica deve ser divertida. É quase sempre satírica. E tentei, assim, respeitar essas ideias, com uma piada ou outra. Mas foi-me difícil inventar um mundo. E sei que há um risco de parecer ridículo.
Mas não o fez como forma alternativa de comentar o mundo real?
Obviamente. Toda a boa ficção científica é uma extensão do mundo real. Comenta os possíveis destinos do mundo. E o mundo que imagino é uma América em declínio. Esta já não é uma potência. Metade está tão poluída que se tornou inabitável, e a outra está dominada por fundamentalistas religiosos e corporações. E com sistemas de informação tão dominados, que ninguém sabe o que se passa. Não é o futuro inevitável da América. Mas nada na América de hoje faz deste futuro imaginado algo implausível. Mas gostava que não o fosse.
Há marcas de uma cidade que viveu o 11 de Setembro no seu livro. Até mesmo na Nova Iorque do século XIX, na cena em que as costureiras se lançam das janelas de uma fábrica a arder [o que aconteceu, de facto]...
Foi intencional, sim. Este é um livro sobre o admirável mundo novo que começou com a industrialização, a mecanização, a possibilidade de construir prédios altos que podem arder. A culpa não é das máquinas. E hoje vivemos num mundo em que há prédios de cem andares em que pode embater um avião... Mas não diria que vivemos sob ameaças sem precedentes. No passado falou-se várias vezes de vários fins do mundo. Mas é verdade que estamos progressivamente mais nervosos à medida que o tempo avança. E temos motivos para estar.
Apesar destes retratos de pesadelo, como vê Nova Iorque no contexto da América actual?
Foi em Nova Iorque que os atentados de 11 de Setembro aconteceram e, nas últimas eleições, foi claramente uma cidade anti-Bush e contra o ataque ao Iraque. Mas foi no Indiana, onde não cairam aviões com terroristas, que as pessoas se sentiram mais ameaçadas e assim sentiram vontade de os matar antes que nos matem a nós.
Espera que Nova Iorque seja exemplo num processo de reinvenção de modelos para uma nova América?
Tenho toda a espécie de esperanças. Mas não sei se Nova Iorque tem mais esse estatuto. Muitos americanos são fundamentalistas religiosos e vivem em lugares onde nunca viram alguém diferente de si. Os americanos, e não só os americanos, são perigosamente desinformados e pouco cultos. 47 por cento da população americana acredita que foi Saddam Hussein quem mandou atacar as Torres Gémeas. E acreditam que o que se está a fazer é ir atrás de quem atacou os americanos.
No passado disse que uma das suas missões como escritor era evitar que homens como Bush chegassem à Casa Branca. Acha que fracassou?
É claro que esperamos que a nossa escrita (ou pintura, ou música) tenha um efeito político sobre o mundo. Mas não nos enganemos... Alguém acredita que Dick Cheney entre na Sala Oval, com o meu livro na mão e diga "Sr. Presidente, li este romance de Michael Cunningham e senti que agimos mal!"... Se queremos de facto a mudança, devemos fazer o nosso trabalho bem feito e depois talvez comprometer-nos pessoalmente com acções políticas concretas.